CALANGOTANGO não é um blog do mundo virtual. Não é uma opinião, uma personalidade ou uma pessoa. É a diversidade de idéias e mãos que se juntam para fazer cidadania com seriedade e alegria.

Sávio Ximenes Hackradt

23.12.11

Cinema - Por Carlos Emerenciano*

“Impressionismo francês”. Enquanto preparava o fumo do seu cachimbo, Doutor Eudes Moura fez essa observação diante de uma reprodução de Claude Monet. Em seguida, virou-se e me perguntou para que curso eu iria prestar vestibular. Ao saber da resposta – arquitetura - começou a discorrer sobre modernismo, Bauhaus e Frank Loyd Wright. Não se limitava a definir as escolas, mas também se posicionava sobre as opções de cada uma. Rejeitava, por exemplo, o minimalismo (“menos é mais”) da Bauhaus e identificava-se com as linhas arquitetônicas de Frank Loyd. 
Eu, que conhecia muito pouco sobre o assunto, fiquei impressionado com as colocações daquele homem de baixa estatura, cavanhaque e cachimbo em punho.

Essa é a recordação mais remota que me vem de Doutor Eudes Moura. Já se vão 20 anos. Acabara de abrir a porta de casa e esperávamos por meu pai, Cláudio Emerenciano. De cara, vi que se tratava de um homem diferenciado, de vasta cultura e inteligência invulgar, revelada não apenas pelo domínio dos assuntos sobre os quais discorria, mas, principalmente, pelo humor presente em suas ótimas tiradas. Doutor Eudes, médico e professor conceituado, não limitou os seus conhecimentos à área em que atuava. Espraiava-os por diversos campos, especialmente o das artes. Conversar com ele equivalia a ler Gombrich, com a vantagem de aprender não apenas lições artísticas, mas de vida.

Em outra ocasião, lembro-me de uma matéria sobre cinema que a equipe do RNTV (jornal diário da TV Cabugi) realizou com Doutor Eudes, Doutor Ernani Rosado e meu pai, gravada lá em casa. Tudo estava montado, quando Doutor Eudes chegou e bagunçou o coreto. Conversou com a repórter sobre o enfoque mais apropriado para a matéria, fez observações sobre o posicionamento da câmera, não se limitando, como se esperava, ao papel de entrevistado.

Ele era assim. Minucioso, curioso, questionador, polêmico, imprevisível. E se o assunto fosse cinema (um dos amores de sua vida), os seus pequenos olhos brilhavam. Tive o privilégio de acompanhar alguns bons papos entre ele, Doutor Ernani, papai e outros amigos que integravam uma espécie de confraria para celebrar a amizade e conversar sobre assuntos de interesse comum.

Certa vez, visitei-o em sua casa. No primeiro andar de um sobrado, ele abrigava o seu grande acervo artístico – milhares de filmes, livros e discos (na maioria de jazz e música clássica). Tinha o hábito de cantarolar e assobiar suas músicas preferidas. Descobri, nesse dia, que Doutor Eudes gostava de desenhar e havia disposto os móveis e objetos de decoração naquele ambiente para que se tivesse a impressão de uma elegante e aconchegante desorganização.

Tento me recordar das preferências cinematográficas dele. Apreciava o humor inteligente e refinado de diretores como o austríaco Billy Wilder e o alemão Ernst Lubitsch. Gostava de musicais, especialmente os estrelados por Fred Astaire. Não suportava Frank Sinatra, a quem considerava um enganador (ciúme de sua diva Ava Gardner, talvez), preferindo a bela voz aveludada de Bing Crosby. Conhecia bem, sabendo discorrer sobre detalhes e curiosidades, os clássicos do cinema, independentemente da origem. Não se descuidava, porém, dos lançamentos, estando sempre atualizado sobre as boas novas do universo cinematográfico.

Doutor Eudes se foi. Papai disse muito bem ter sido o seu velho amigo um Quixote. Era alguém, ao mesmo tempo, do passado (preservador de valores culturais e civilizacionais) e do futuro (homem de vanguarda, aberto às inovações). Nunca de um tempo presente de intolerância e mediocridade. Um dos seus filmes prediletos, “La grande illusion” (1937), de Jean Renoir, mostra um capitão alemão (em marcante atuação de Erich von Stroheim) que constrói uma comovente amizade com prisioneiros franceses, demonstrando grande sofrimento por impingir-lhes o cárcere. Os diálogos entre eles compõem um libelo contra a tirania e em favor da civilidade e boa convivência entre os povos. Por um mundo assim, Eudes Moura sonhava e erguia a sua lança.

*Carlos Emerenciano - Apreciador de um bom filme, dividirá com os leitores suas impressões sobre cinema às sextas-feiras.
Twitter: @cemerenciano
e-mail: aemerenciano@gmail.com



0 comentários:

Postar um comentário


Estação Música Total

Últimas do Twitter



Receba nossas atualizações em seu email



Arquivo